quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Do sítio Baixa Dantas à fazenda Caldeirão



Do sítio Baixa Dantas à fazenda Caldeirão


Por Jack Correia.


“O olho da inveja, a mão da maldade, fez perversidade fez destruição. Gente massacrada, gente assassinada, gente desterrada do meu caldeirão”,
assim diz a música “Caldeirão da Santa Cruz do Deserto”, do grupo Dr. Raiz * que nesta canção, faz alusão a uma das maiores tragédias da história do Nordeste Brasileiro e que aconteceu no Cariri Cearense, na cidade de Crato, no ano de 1937 quando centenas de pessoas foram mortas de maneira sórdida, cruel e covarde.

Para falar deste episódio é preciso entender o que foi a comunidade liderada pelo Beato Zé Lourenço, um dos personagens mais marcantes da história do Ceará, que começou sua trajetória no Cariri Cearense no ano de 1890, quando chegou à região em peregrinação pelo sertão buscando auxílio do Padre Cícero Romão Batista, cuja fama que lhe tornou um mito brasileiro com os seus “milagres” envolvendo a beata Maria de Araújo, já percorria por todo o País.

José Lourenço Gomes da Silva era o nome dele. Paraibano, pobre, negro, analfabeto e filho de sertanejos, assim como muitos outros nordestinos daqueles tempos, vinha movido pelo sentimento de esperança, depositando todo o seu destino nas mãos de um homem que acreditava ser milagroso e santo.

Em pouco tempo ele ganhou a confiança do Padre Cícero, que lhe deu a missão de arrendar algum pedaço de terra na região e nele trabalhar com algumas famílias que não paravam de chegar à Juazeiro do Norte também em busca de ajuda do “santo”. E assim, por volta de 1891, José Lourenço, com contrato verbal, arrendou uma parte do sítio Baixa Dantas, localizado em Crato e de propriedade do coronel João de Brito, levando algumas pessoas. E é neste lugar que uma nova sociedade se forma no sertão cearense.


O sítio Baixa Dantas

Era até então um solo pobre, sem produção alguma, que através de muito trabalho dos romeiros, tornou-se lugar próspero. Tudo o que era resultado dos dias a fio com a enxada na mão, grande parte pagava o arrendamento ao dono da terra e o resto era dividido igualmente entre seus membros. Logo o imóvel apresentava consideráveis benfeitorias e mais pessoas chegavam de outros estados nordestinos, atraídos pelos “milagres” do patriarca de Juazeiro do Norte, que encaminhava muitos miseráveis para lá, inclusive, ladrões e assassinos que precisariam ser “reeducados na fé”.

Um fato curioso da época do sítio Baixa Dantas foi quando o Padre Cícero entregou aos cuidados do Beato Zé Lourenço um “animal valioso” que haviam lhe dado de presente. Era um touro da raça Cruzerá, que sendo dócil e muito bonito, ficou conhecido como Boi Mansinho. Por pertencer ao Padre Cícero, foi tão querido pelos romeiros que logo foram considerados hereges e a imprensa do Pais divulgava tudo aquilo como um reduto de fanáticos perigosos que adoravam um animal como se fosse um deus. Diziam que bebiam urina do animal e usavam suas fezes para curar doenças.

Com todas as notícias e mesmo sem ter certeza se eram ou não especulações, Floro Bartolomeu (deputado federal na época), ordenou que prendessem o Beato. Determinou ainda que o Boi Mansinho fosse abatido na frente dele e que lhe dessem a carne do bicho pra comer. Ele resistiu, pois, nenhum seguidor do Padre Cícero seria capaz de tal gesto! A morte do animal causou grande comoção e o Beato só foi libertado depois de 18 dias por ordens do Padre Cícero, que, apesar de ter poderes para tanto, nada fez para evitar aquele episódio humilhante.

Já apareciam, portanto, os sinais de que o Beato e aquela comunidade incomodavam, que as atenções estavam voltadas para eles e que uma “sociedade de famintos” organizada representava uma ameaça. Em 1926, o sítio Baixa Dantas foi vendido com todas as benfeitorias que tornaram o imóvel um dos melhores da região, e todos foram expulsos do lugar sem direito a nenhum ressarcimento.

A fazenda Caldeirão

O Padre Cícero ordenou que o Beato Zé Lourenço levasse todos para uma de suas propriedades. Era uma fazenda em Crato, cidade natal do Padre chamada Caldeirão dos Jesuítas e cuja terra ainda não tinha “vida” como na chegada à Baixa Dantas. O lugar tinha esse nome por causa de depressões geográficas em formas de "grandes caldeiras", e um dia serviu de esconderijo para 2 jesuítas que fugiam das perseguições do Marquês de Pombal no séc. XVIII. Surgia, então, o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, que passou a se chamar assim por causa da cruz que os penitentes levavam nas peregrinações e, quando chegaram, afixaram naquele lugar que mais parecia um deserto de tão seco que era.

Não tinha nada que parecesse útil para moradia, só muito mato, pedra e poeira. Havia um clima maior de louvor ao Padre Cícero porque, ao contrário do Beato Zé Lourenço, os sertanejos pensavam ser terra doada e não “emprestada”. Tornar fértil aquele chão sem dispor de nenhum custo não seria o intuito maior por trás da “generosidade” em cedê-lo àquele povo miserável? Conseguiram levar alguns pequenos animais e sementes e o Beato Zé Lourenço iniciou o mesmo movimento do sítio Baixa Dantas, com reza, trabalho e divisão da produção. Ergueram suas casas, fizeram barragens, reservatórios d’água, armazéns, engenho, criaram sistemas rudimentares de irrigação desenvolvendo a agricultura e pecuária, construíram também um cemitério e uma capela para as orações, etc. Tudo por todos e para todos! Surgia uma espécie de vila, refúgio para os desprotegidos, perseguidos, errantes e órfãos que ficavam sob os cuidados do Beato.

Produziam tudo o que precisavam, até roupas e calçados, e o produto do trabalho era dividido de acordo com a necessidade de cada família. No novo lugar já surgia produção excedente que era vendida e o lucro, investido na terra e na compra de alguns produtos que só havia na cidade, como querosene, por exemplo. Isaías (espécie de secretário do Beato) era o único que ia ao comércio de Crato para comprar algo. As orações diárias e completa devoção ao Padre Cícero, ou, "Padim Ciço" continuavam a ser “leis estabelecidas”, assim como, respeito e obediência ao Beato Zé Lourenço, quem tomava decisões internas.

Por ordens do "Padim Ciço", havia dias que trabalhavam em fazendas alheias sem, logicamente, receberem nada em troca. Para alguns historiadores, isso representava apenas uma cordialidade com fazendeiros vizinhos, mas para estudiosos mais atentos, esse fato tinha semelhança com regime de servidão.

Com intensidade “a vila” no Caldeirão crescia. Foi tomando dimensões maiores que o próprio tamanho físico. Estima-se que em 4 anos já havia mais de 1.000 habitantes no lugar e todo o País já sabia daquela comunidade. Mas o Caldeirão não atraia somente aqueles que se tornariam seus agregados. Atraía também olhares de cobiça e insatisfação das autoridades políticas e religiosas da região.

Os líderes católicos consideravam o Caldeirão um “reduto de fanáticos”, não aceitando quaisquer manifestações do catolicismo popular que crescia consideravelmente através das romarias à Juazeiro do Norte. Quando eclode a “Revolução de 1930” do Governo Vargas, os “revolucionários” seguiram ao Cariri na pretensão de desarmar coronéis e “fanáticos religiosos”. Achavam que o Caldeirão abrigava loucos armados, e com isso, tentaram prender o Beato que – avisado com antecedência – conseguiu fugir. No lugar, porém, não encontraram armas, e sim, pobres camponeses com seus instrumentos de trabalho.

Em 1932 com uma grande seca, o número de habitantes cresceu. O Beato Zé Lourenço acolhia todos que chegavam. Foram quase 2 anos de estiagem onde mais pessoas encontraram abrigo na comunidade e onde muitos decidiram ficar. Em 1934 quando morre o Padre Cícero muitos passam a acreditar que o Beato seria o seu sucessor religioso.

A Comunidade ameaçada

Como todo grupo que surge de forma adversa a um contexto social considerado “apropriado”, o Caldeirão realmente tornou-se uma ameaça política e religiosa. Ora, eram homens, mulheres e crianças que dividiam o que produziam em terra que não lhes pertencia e já não pagavam mais por ela, não dependiam do comércio, eram liderados por um homem analfabeto que ganhava notoriedade no País (Beato Zé Lourenço), tinham devoção cega em um sacerdote e político (Padre Cícero) e quando não estavam na lida, saiam pelos sertões cantando e rezando com suas penitências.

Ao contrário do Padre Cícero, o Beato Zé Lourenço não tinha influência política fora da comunidade e nem relações estreitas com os ricos da região, logo, seria fácil destruir o Caldeirão! É claro que as perseguições contra eles já existiam no sítio Baixa Dantas, mas a situação veio a se agravar depois da morte do Padre Cícero quando os bens dele passaram a pertencer aos Salesianos (integrantes de uma ordem religiosa nomeados pelo Padre Cícero como seus herdeiros). E, dentre os bens que formavam a considerável fortuna deixada pelo patriarca de Juazeiro do Norte, estava, a fazenda Caldeirão.

Os Salesianos queriam o Caldeirão com todas as benfeitorias e expulsar todos sem, obviamente, ressarci-los por tudo que fizeram na terra. Para os trâmites legais do ato, contrataram o advogado Norões Milfont. A idéia de que o Beato representava uma séria ameaça à sociedade foi reforçada. A Igreja falava dos “sérios riscos daquele bando de fanáticos”, dizia haver “armas soviéticas” no Caldeirão, que o Beato “vivia em concubinato com muitas mulheres” tendo uma espécie de “harém”, etc. Enquanto isso, os pobres sertanejos sequer tinham conhecimento de um lugar no mundo chamado União Soviética e sabiam menos ainda o que era uma política socialista, ainda que, de certa forma, a vivenciassem de fato.

Em 1936 autoridades religiosas e políticas se reuniram em Fortaleza, dentre elas, o bispo do Crato D. Francisco de Assis Pires e o Governador Menezes Pimentel para discutirem acerca do “grande risco” que aquela comunidade representava, e, premeditaram a destruição do lugar com uma ação militar. Primeiro enviaram um “espião”, o capitão José Bezerra, para se infiltrar no Caldeirão como um pobre comprador de algodão e fazer um levantamento geral do dia-a-dia de todos. Ele cumpriu a ordem, tirando do Beato todas as informações que precisava. Em retorno, o “fiel escoteiro” fez todo o relato ao Governo do Estado, dizendo ser ali uma “ameaça comunista” e que "uma nova Canudos surgia", para justificar assim, os atos que haveriam de vir. Passou a idéia de que eram um risco contra o Poder do Estado, sendo urgente uma intervenção militar.

O fim do Sonho Coletivo

Para destruir o Caldeirão, em setembro 1936, uma expedição militar comandada pelo Capitão Cordeiro Neto e pelo Capitão José Bezerra seguiu para o Cariri. O Beato soube com antecedência e fugiu. As pessoas não ofereceram resistência e não tinham com elas as famosas “armas comunistas”, apenas suas enxadas, arados e outros instrumentos de trabalho. Determinaram que todos fossem embora deixando tudo pra trás, mesmo sendo, em sua maioria, nordestinos de outros estados. Saquearam e incendiaram as casas e os armazéns, arrancaram as portas da capela, destruíram as plantações, bateram nos camponeses e deixaram eles sem alimento.

A comunidade estava abalada e suas coisas destruídas. Se alojaram em acampamento na Serra do Araripe em área chamada Mata dos Cavalos e surgia uma divisão: uma parte ao lado do Beato que queria paz e não reagir, e outra, se rebelava. Mas havia um clima de guerra maior no ar. O estopim veio em 10 de maio de 1937, quando o Capitão José Bezerra e alguns soldados seguiram para a Serra do Araripe, mas em luta com alguns sertanejos, morreu com um golpe de foice. Os soldados feridos conseguiram fugir, o mal êxito policial causou temor entre as autoridades e mais raiva contra os sertanejos. A situação se agravou e acabar com os fanáticos virou “questão de honra”.

Seguem tropas para a Chapada do Araripe. O 1º Batalhão de Combate da polícia militar da capital cearense marcha para a região sul do Ceará com o auxílio de tropas do 23º Batalhão de Combate por autorização do ministro da guerra, o general Eurico Gaspar Dutra. Aviões seguiram para o lugar de conflito (Serra - acampamento).

No dia 12 de novembro de 1937 metralharam e jogaram artefatos explosivos nos miseráveis indefesos que, em sua grande maioria, sequer estavam na operação em que morreu José Bezerra. Aconteceu ali uma verdadeira chacina! Casebres foram incendiados com pessoas dentro, crianças e adultos brutalmente mortos. Inutilmente, muitos imploravam por suas vidas ou, pelo menos, pouparem suas famílias. A tiros policiais perseguiram os fugitivos por toda a Serra do Araripe. O Beato conseguiu fugir para Pernambuco com outros sertanejos, mas muitos que conseguiram atravessar a fronteira foram massacrados pelas forças policiais de lá que estavam em pontos estratégicos, já avisados pelo Governo do Ceará sobre o conflito.

Naquele episódio, fizeram com os cadáveres quase o mesmo que os nazistas fizeram com os judeus. Amontoaram todos e os incineraram com gasolina, e outros, eram enterrados em valas coletivas. Mais de 1.000 pessoas morreram naquele dia de forma desumana e cruel. Anos depois, vários crânios ainda eram facilmente encontrados (principalmente de crianças) e habitantes da região que nada tinham a ver com a comunidade do Beato eram perseguidos, interrogados, torturados e até mortos.

Alguns sobreviventes da matança se estabeleceram na Bahia, quando em 1938, as autoridades baianas foram “alertadas do perigo” daquele povo e, através de intervenção militar, expulsaram e exterminaram os sertanejos “fanáticos”. Estima-se que mais de 400 deles foram mortos.

O Líder

O Beato Zé Lourenço se estabeleceu com algumas famílias em Exu-PE, na fazenda União. As autoridades pernambucanas que conheciam a personalidade pacífica dele, deixaram que ficassem (sob vigilância), quando o fim das perseguições se deu em 1944.

Através do advogado Antônio de Alencar Araripe, o Beato ingressou com uma Ação Judicial contra o Governo do Ceará, requerendo indenização pelos danos sofridos, mas por um detalhe processual (prescrição do direito de agir), a Justiça indeferiu seu pedido.

O líder da comunidade veio a falecer de peste bubônica em 12 de fevereiro de 1946, aos 74 anos de idade. Seu corpo foi levado em cortejo por uma multidão à Juazeiro do Norte, onde foi sepultado no cemitério do Socorro. Ainda que tenham havido passagens muito questionáveis em toda a sua trajetória, o Beato construiu uma história de grande relevância. Sob uma visão geral, fez a boa política social sem a consciência nítida de tê-la feito!

A Terra

O que foi mais determinante para fazer daquela comunidade uma séria ameaça, religião ou política? Decerto, estão interligadas em um só ponto: a terra. Era nela que eles plantavam suas esperanças buscando independência econômica baseada na fé e no trabalho. Em verdade, não era “a terra prometida” e a real liberdade não existia. Mas acreditavam nisso, e durante mais de 40 anos conservaram uma sociedade comunitária sem conflitos internos.

A comunidade que surgiu no sítio Baixa Dantas e continuou na fazenda Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, foi por excelência um fenômeno social e político de um povo que buscava sua emancipação em resposta à exploração fundiária que só gera fome e miséria. Ela só poderia ser uma ameaça para quem vê na terra uma fonte de domínio e de riqueza, não para quem a enxerga como uma fonte de sobrevivência humana onde se tira, apenas, o necessário.

É claro que a única colisão parecia religiosa, onde adoradores do Padre Cícero geraram insatisfação ao chegar com suas crenças em um homem que, ao invés de santidade, o que tinha na verdade era um notável poder de eloqüência que se revela até os dias de hoje e em proporções gigantescas. Mas naqueles tempos, o Catolicismo Popular não seria tão pertinente - a princípio - se toda uma questão patrimonial e de poder político não estivessem ameaçadas com aquele grupo organizado. Em mais tempo, o "controle ideológico" definitivamente não pertenceria mais ao Estado e menos ainda, ao Catolicismo Tradicional.

Todavia, a comunidade do Beato deixou sua “semente” que ainda “pulsa na terra” com força, o que demonstra a sua grande importância histórica. No Cariri há vários assentamentos rurais e a comunidade que surgiu e cresceu entre o sítio Baixa Dantas e a fazenda Caldeirão é hoje exemplo de luta e resistência para essas famílias que vivem da terra e para a terra. Esta, porém, é uma abordagem importante a ser feita em outra oportunidade.

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Em notas:

Desde menina eu ouvia falar algo sobre “beatos”, “boi santo”, “gente assassinada”, etc., mas sem muita consistência porque, a História do Ceará não consta na programação pedagógica de nenhuma escola pública ou privada e nada desta história também é relatada nos museus da região. Estudei sobre Antônio Conselheiro mas não sobre o Beato Zé Lourenço! Por outros meios, conheci esta história, que a maior parte do Cariri Cearense desconhece. Para contar ela aqui, em resumo, com cronologia dos fatos, coletei dados importantes de autores que já conhecia como Vera Lúcia G. Maia, Aílton de Farias e Mons. Assis Feitosa, além de conversar com minha prima, a Prof. Gilsenaide Alexandre que ensina História, e com o Prof. Judson Jorge que ensina Geografia do Nordeste. No contexto há minha análise pessoal baseada em todas as informações, conflitantes ou não, que tive ao longo dos anos e em tudo o que observo de perto acerca da religiosidade na região.

(*) O grupo Dr. Raiz é formado por músicos da região do Cariri Cearense. A música nesta pesquisa é de autoria de Dudé Casado (letra em parceria com Hélio Ferraz), integrante da banda e a quem agradeço pela permissão de exibir aqui o seu trabalho. Na introdução é cantado o “Bendito de São Sebastião” pelos Penitentes de Barbalha-CE.


Fonte: Texto originalmente publicado no Overmundo por Jack Correia

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