sábado, 18 de dezembro de 2010

Apesar de leis, ex-presos enfrentam resistência no mercado de trabalho


'Liberdade virou tormenta', diz jovem que ficou sem emprego após ser solto.


Estados passam a determinar cotas de ex-detentos em empresas.



F.C., de 44 anos, tem esperança de ser registrado.

F. C., de 44 anos, tem esperança de ser registrado.

"As pessoas não acreditam que a gente está
disposta a se recuperar. Acham que a gente
pensa em roubar de novo."

(Foto: Daigo Oliva/G1)

Em 2010, pelo menos 9 governos estaduais e prefeituras aprovaram leis que obrigam ou estimulam empresas contratadas pelo poder público a ter uma cota de 2% a 10% de ex-presos entre os funcionários, segundo o Conselho Nacional de Justiça e levantamento feito pelo G1. A criação de meios pelo Estado para reinserir ex-detentos no mercado é prevista desde 1984, quando foi criada a Lei de Execução Penal, mas normas que determinam ou incentivam a contratação de ex-presos são recentes.

Em 2009, leis desse tipo foram aprovadas em ao menos 5 localidades e, em 2008, no Distrito Federal. Ao menos 2 projetos estão em tramitação, no Piauí e no Ceará. Antes disso, a única norma parecida encontrada pela reportagem é de 2002, do Rio de Janeiro, mas não chegou a ser colocada em prática, segundo a Fundação Santa Cabrini. Há, ainda, leis que preveem pagamento pelo estado de até 2 salários mínimos a empresas por preso admitido (veja no quadro abaixo).


"A liberdade, que eu sonhava e almejava, passou a ser uma tormenta"

R. N., de 31 anos, ex-presidiário

Essas medidas buscam mudar realidades como a de R. N., de 31 anos, ex-presidiário de Minas Gerais. Ele recebeu o alvará de soltura em junho, após cumprir 11 dos 18 anos de sua pena, beneficiado pela progressão de regime. Enquanto estava preso, trabalhou, fez cursinho e passou no vestibular para direito. R. N. estava no último ano da graduação quando conseguiu a liberdade condicional. Como o contrato de trabalho valia somente para o período de prisão, acabou sem emprego e, consequentemente, precisou trancar a faculdade.

“A liberdade que eu sonhava e almejava passou a ser uma tormenta”, diz. Desempregado e com três filhos, sua família tem sobrevivido com o trabalho de sua mulher, que é depiladora. R. N. foi condenado em 1999 por assassinato por motivo passional. Ele disse que não se conformou com uma traição. "Já paguei o que tinha de pagar e estou enfrentando a sociedade, que é conservadora e não quer me oferecer oportunidades.”

Reincidência, preconceito e baixa escolaridade


Assim como R. N., os demais ex-presidiários entrevistados nesta reportagem pediram para não terem o nome completo e os rostos identificados. “O grande problema de inserção [de ex-presos] no mercado de trabalho é o preconceito. O ex-presidiário que não consegue se fixar volta para a criminalidade. E quem paga é a sociedade, é um preconceito que gera prejuízo”, afirma Mauro Rogério Bitencourt, coordenador do programa de reintegração social da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo. O índice de reincidência no crime no Brasil gira em torno de 60% a 70%, segundo o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.

Eu não contei (que foi preso) porque cheguei a perder vários empregos depois de revelar meu passado"

J.C., de 33 anos, ex-detento

R. N. foi uma exceção no que diz respeito ao nível de escolaridade de presos no país. De acordo com o Ministério da Justiça, em junho deste ano, aproximadamente 75% dos 440,9 mil que estão no sistema penitenciário nacional tinham até o ensino fundamental, o que torna ainda mais difícil a busca por emprego. Após viver 13 de seus 33 anos atrás das grades por assassinato, J.C., que terminou o nível fundamental na prisão, afirma que foi muito difícil recomeçar a vida em São Paulo. Solto em junho de 2009, o ex-detento levou mais de um ano para conseguir um emprego com carteira assinada. O patrão o contratou sem saber que ele já foi preso.

“Eu não contei porque cheguei a perder vários empregos depois de revelar meu passado”, diz. Hoje, ele trabalha como cozinheiro em um restaurante. A experiência ele adquiriu dentro da prisão mesmo, já que trabalhou na cozinha de penitenciárias por 12 anos.


A mesma situação vive F. C., de 44 anos, também em São Paulo e que ainda não completou o nível fundamental. Ele conseguiu um emprego em novembro e, assim como J. C, não contou sobre seu passado ao empregador. Solto em agosto, após ficar preso por 1 ano e 8 meses por roubo de carga, ele afirma que é muito difícil recomeçar por conta da discriminação. “As pessoas não acreditam que a gente está disposta a se recuperar. Eles acham que a gente está pensando em roubar de novo. Por isso, decidi não contar (sobre o passado) ao meu chefe, é melhor esconder”.

O trabalho que conseguiu foi por indicação. “Eles disseram que vão registrar em carteira”, diz ele, esperançoso. F. C. afirma que o emprego, junto com o apoio de familiares e pessoas próximas, é essencial para que ele não volte a cometer crimes.


Custo do emprego


Quando ainda estão atrás das grades, os presos que trabalham não estão sujeitos às regras da CLT, o que acaba por ser um benefício à contratação de presidiários por parte das empresas. Nesses casos, a remuneração mínima é de 3/4 do salário mínimo. Presos dos regimes fechado e semiaberto não são, ainda, considerados segurados obrigatórios da Previdência.

Após saírem da prisão, contudo, os ex-detentos são considerados cidadãos comuns e, quando contratados, são regidos pela CLT, tornando-os menos atrativos para os empregadores. Além disso, a legislação trabalhista não fala, especificamente, se a empresa pode ou não pedir atestado de antecedentes criminais na contratação. De acordo com o juiz do trabalho Marcelo Segal, o assunto é polêmico, mas a solicitação pode ser considerada discriminatória e inconstitucional. Ele diz que, em alguns casos, porém, a exigência pode ser válida por conta da função a ser exercida pelo trabalhador.

Novas leis para incentivar trabalho


Em 2008, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou o Programa Começar de Novo, que busca incentivar governos, empresas e a sociedade a criar propostas de trabalho e cursos de capacitação profissional para presos e ex-detentos. “Essas leis [e decretos] são uma tendência moderna", diz Luciano Losekann, juiz auxiliar da Presidência do CNJ e Coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário. Segundo ele, antes já existiam, porém, programas que buscavam dar auxílio aos ex-presos.

O próprio conselho fez, desde 2008, 42 convênios com instituições de educação e tribunais, entre outras entidades, para dar apoio a detentos e ex-detentos. Um deles, com o Comitê Organizador Brasileiro da Copa do Mundo Fifa 2014, é para o incentivo de trabalho em obras de infraestrutura do evento.

Manu trabalha no regime aberto e não sabe como será quando receber a liberdade definitiva

Manu trabalha no regime aberto e não sabe como
será quando receber a liberdade definitiva.

(Foto: Paulo Almeida/Divulgação Governo de PE)

Governo decide pagar empresas


Em Minas Gerais, além do programa de apoio aos ex-detentos já existente, o governo deverá começar, em 2011, a oferecer às empresas que contratarem ex-presos subvenção econômica trimestral de 2 salários mínimos a cada ex-presidiário admitido.


“Por mais que a gente queira que esse trabalhador esteja na empresa como um outro qualquer, há diferenças e marcas sociais, começando pela escolaridade, além do próprio histórico de aprisionamento. A carteira de trabalho estará com uma lacuna. Há, ainda, o atestado de antecedentes”, lembra Saulo Rodrigues de Morais, coordenador do Programa de Reintegração Social de Egressos do Sistema Prisional em Minas Gerais.

F. M., de 23 anos, conseguiu emprego com ajuda do governo. Ele trabalha há cerca de 1 mês em uma empresa do setor metalúrgico. “Estou gostando demais. Acordo às 3h todo dia e falo ‘graças a Deus’, mais um dia de trabalho”, afirma.

A sociedade sempre teve uma percepção de estigma em relação aos presos. Não queremos conviver com essas pessoas, como se elas fossem portadoras para sempre de uma marca"
Fernando Afonso Salla, pesquisador da USP

O jovem, que ainda não completou o ensino médio, faz planos para o futuro: no ano que vem, pretende concluir os anos que faltam para ingressar na faculdade de educação física. “Nada que não me impeça de fazer um curso voltado à área em que estou trabalhando no meio do caminho”, diz. O metalúrgico foi preso em maio de 2007, por roubo de automóvel, e saiu em setembro de 2008. Ele revela que viveu no crime por 5 meses e chegou a roubar mais de 60 carros. Arrependido, diz que não cometerá mais roubos e afirma que hoje trabalha para realizar seu sonho:comprar o próprio carro.

Em São Paulo, que tinha, em junho deste ano, 164,4 mil presos em penitenciárias, que são 37% do total do país, cerca de 30 mil recebem liberdade a cada ano. O decreto aprovado no estado não obriga, mas faculta empresas que vencerem licitação a contratarem até 5% de ex-detentos. Um segundo decreto já foi publicado prevendo uma lista dos setores onde será obrigatória a contratação, diz Bitencourt, coordenador do programa de reintegração social do estado.

Liberdade 'apavora'
Em PE ainda não há uma lei que reserve vagas para os ex-presos, diz Zuleide Lima de Oliveira, coordenadora da Chefia de Apoio a Egressos e Liberados (Cael) da Secretaria Executiva de Justiça e Direitos Humanos. A coordenadora afirma que, no entanto, vem fazendo um trabalho de “formiguinha” para tentar colocá-los no mercado de trabalho. Há convênios que oferecem trabalho para quem ainda está no regime aberto.

“Quando os presos terminam a pena eles não querem sair [da prisão] porque o convênio acaba. Eles ficam apavorados”, comenta Zuleide. Manu, de 29 anos, está no regime aberto e trabalha para o governo de Pernambuco. “Acredito que vou ficar aqui até terminar a pena. Depois, não sei o que vou fazer. Espero que o trabalho aqui conte como experiência para outras empresas”. Presa em 2004 por assassinato contra o ex-marido, Manu ainda tem ao menos quatro anos de pena para cumprir, a depender de seu comportamento, estima.

"Os ex-presos são os que trabalham melhor, pois querem uma oportunidades para provar que mudaram"
Roberto Júnior, de 32 anos, ex-preso

O lado dos empregadores


O medo dos detentos de ficarem livres, mas desempregados, contudo, esbarra em um outro: o dos empresários que, na maioria das vezes, não querem ter um ex-presidiário no quadro de funcionários. “A maioria das empresas têm medo”, diz Morais, coordenador do programa em Minas Gerais.

O empresário J.M. Lanza, de São Paulo, contrata ex-presidiários para fazer entregas como motoboys há mais de dez anos. O que o motiva, contudo, não são retornos financeiros, mas a vontade de dar uma oportunidade para quem quer melhorar, incentivado pela religião que segue, a evangélica. “Aqueles que querem oportunidades mesmo são até mais responsáveis do que os que nunca foram presos”, diz.

O empregador, que também pediu para não ter o nome completo divulgado, afirma que já teve problemas com alguns funcionários, que chegaram a cometer crimes durante o horário de expediente. Ele diz, porém, que os prejuízos acabam entrando dentro da margem média de problemas que costumam acontecer na empresa. “A gente se move pela ideia de dar oportunidades. Como eu vou saber se alguém quer melhorar se eu não der oportunidades.”

O professor Fernando Afonso Salla, pesquisador no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), lembra, ainda, que as empresas, em todos os momentos, têm problemas com funcionários, seja por ilegalidades cometidas dentro do trabalho, seja por questões comportamentais. "Todas as empresas têm instrumentos de lidar com esses problemas, independentemente de as pessoas terem passagem (criminal) ou não."


Ex-preso contrata ex-presos

Roberto Júnior, de 32 anos, que ficou seis anos preso por tentativa de assassinato, hoje é microempresário no Espírito Santo e dá prioridade para a contratação de ex-presos.

Júnior fez cursos de eletricista e bombeiro hidráulico quando estava preso e, ao receber liberdade, em 2007, conseguiu emprego em uma empresa privada com a intermediação da Secretaria de Estado da Justiça do Espírito Santo. Com a experiência que adquiriu nessa e em outra companhia, abriu seu próprio negócio e presta serviços de engenharia elétrica para o setor da construção. Com nível médio completo, ele pretende fazer faculdade de engenharia. “Os ex-presos são os que trabalham melhor, pois querem uma oportunidade para provar que mudaram”, diz.


Outros exemplos

Para o professor Fernando Afonso Salla, é fundamental que o estado desenvolva mecanismos tanto para incentivar empresas privadas a contratar ex-detentos como para absorvê-los, mobilizando a própria estrutura estatal. De acordo com Salla, o trabalho é muito focado nas políticas públicas por ser a fonte pela qual as pessoas adquirem os meios para a sobrevivência.

O especialista aponta, ainda, a necessidade de o estado criar apoio a quem sai da prisão, de forma a colaborar para a reinserção. “A sociedade sempre teve uma percepção de estigma em relação aos presos. Não queremos conviver com essas pessoas, como se elas fossem portadoras para sempre de uma marca”, explica.

Sempre foi um desafio fazer com que as pessoas que passam por essa experiência tenham capacidade de se reinserir na sociedade"
Fernando Afonso Salla, pesquisador da USP

O Paraná, por exemplo, possui o programa o Programa Pró-Egresso, que assiste aos ex-presos em áreas como a de direito, psicologia, serviço social, cursos e integração ao mercado de trabalho. No Rio Grande do Sul, a Fundação de Apoio ao Egresso do Sistema Penitenciário (FAESP), que é filantrópica, também dá assistência parecida, assim como acontece em São Paulo e Minas Gerais. A Fundação Santa Cabrini, do estado do Rio de Janeiro, dá assistência, entre outros estados e municípios.

A Lei de Execução Penal também prevê, se necessário, a concessão de alojamento e alimentação ao egresso, em estabelecimento adequado, pelo prazo de dois meses após a saída da prisão. O prazo poderá ser prorrogado uma vez, se comprovado o empenho do egresso na obtenção de emprego. O governo de PE deverá criar, nesses moldes, casa para atendimento de 300 ex-presos ao ano, com ajuda do Ministério da Justiça.

Para o professor, contudo, o que é feito no Brasil em termos de apoio a ex-detentos ainda é muito pouco. “Nos países desenvolvidos, as estruturas de apoio para quem sai da prisão são muito mais consistentes. No Brasil, em alguns estados, tem alguma coisa que eu diria que fica no plano do razoável.”

O professor lembra, ainda, da precariedade do sistema prisional. “Análises constatam que a prisão aprofunda as carreiras criminosas (...), acaba danificando ainda mais a condição de quem está preso. Sempre foi um desafio fazer com que as pessoas que passam por essa experiência tenham capacidade de se reinserir na sociedade.”


Fonte: G1

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